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terça-feira, 6 de maio de 2025

Geração lança livro polêmico sobre "Favelismo"

 

FAVELISMO


Gê Coelho, formado em Filosofia, propõe uma nova visão sobre a favela, seus habitantes e seus potenciais

A meta é mais que ambiciosa: criar um novo “ismo” – nem mais, nem menos. O autor, Geraldo Henrique Coelho dos Santos, que assina como Gê Coelho, é um homem jovem, simples, de fala mansa, e dentro dele pulsa uma paixão pouco vista em um militante da causa antirracista e dos favelados. Mais: ele não apenas propõe, ele age: participa de empreendimentos como a Favela Seguros, empresa subsidiária da gigantesca MAG Seguros, onde trabalha, e que deu apoio para a publicação e divulgação de seu livro (Favelismo – a revolução que vem das favelas, 176 pp., Geração Editorial, R$ 49,00 o livro impresso, R$ 36,00 o e-book).

 

Gê Coelho nasceu numa favela, começou sua educação tardiamente e desde então não perdeu tempo: educou-se, formou-se em História, fez mestrado em Filosofia e escreveu a dissertação acadêmica que deu origem a este livro, no qual propõe um novo modelo econômico, político e social: o favelismo. “O favelismo”, diz ele, “é uma teoria política que reconhece a favela como um sujeito histórico, coletivo e ativo na produção de conhecimento, cultura e transformação social.”

 

Com uma população estimada em cerca de 17 milhões de pessoas, as favelas movimentam mais de R$ 200 bilhões por ano. Dentro da favela, de sua estrutura, de suas vivências, deste lugar onde a luta diária é por direitos básicos, e aonde o estado não chega – e, quando chega, é violento e opressor – há uma população com seus saberes e uma energia revolucionária que produz arte, produtos, serviços, ideias e política. Uma política que ainda vai se expressar por um partido próprio.

 

Este novo modelo está baseado na solidariedade, na coletividade, no respeito, no amor, na teimosia, no pensamento crítico – uma visão nova sobre a situação da população das “comunidades” (as favelas) e o que se pode fazer para não só resolver seus problemas, mas usar a energia e o potencial presentes nelas. O favelismo tem grandes ambições: sair da defensiva e ir para as ruas, em busca de compreensão, apoio e sustentação.

ENTREVISTA PARA A ESCRITORA CÁSSIA JANEIRO

 

 

– Sua trajetória é muito interessante e vai da favela à universidade. Fale um pouco sobre ela.

 

– Na verdade, o que se considera "interessante" na minha trajetória deveria ser, em um país minimamente justo, banal. Todo jovem favelado deveria ter assegurado o direito pleno de decidir o que deseja ser: engenheiro, médico, artista ou vendedor. Mas, na prática, a realidade nas favelas impõe uma série de bloqueios estruturais que inviabilizam o sonho mais básico. As políticas públicas voltadas para a educação nos territórios periféricos, por exemplo, costumam se apresentar mais sob a forma de balas perdidas em frente às escolas do que como projetos de permanência estudantil. A minha trajetória foi moldada não por um dom especial ou genialidade nata, mas por um conjunto de coincidências e rupturas internas. Entrei na escola tarde, carregando uma identidade marcada pela suposta "baixa capacidade intelectual", uma marca cruel que a sociedade insiste em impor aos corpos favelados. Por muitos anos, introjetei a ideia de que a universidade não era um espaço possível para mim — era um lugar dos outros, dos “escolhidos”, dos filhos da classe média e da branquitude acadêmica. Mas, em um momento de deslocamento subjetivo, algo se abriu em mim. Tentei o vestibular. Fui aprovado. Não só entrei, como obtive o maior Coeficiente de Rendimento da minha turma. Isso me levou à pós-graduação, depois ao mestrado, para o qual fui aprovado em dois programas: História e Filosofia. Optei pela Filosofia, pois ali encontrei ferramentas críticas mais potentes para pensar o mundo e as estruturas que violentam minha comunidade. O que aprendi, e que gosto de repetir, é que a academia não é — ou não deveria ser — um reduto exclusivo de gênios. Mas, se por acaso for, então é necessário reconhecer que um favelado também pode sê-lo. E se eu sou um, sou porque carreguei comigo a sabedoria coletiva da favela, que sempre me ensinou a sobreviver, a questionar, e a imaginar outros futuros possíveis.

 

 

– Em seu livro você relata que a universidade não é, por excelência, um espaço que costuma abrigar vozes da favela. Como foram esses anos dentro da academia? Quais são seus planos nesse sentido?

 

– Vivemos um momento em que expressões como “racismo estrutural” se popularizaram, mas é preciso reafirmar seu conteúdo real: as instituições brasileiras foram fundadas sobre bases racistas, e a universidade é uma expressão direta disso. A experiência acadêmica, sobretudo em instituições como a UFRJ, onde cursei o mestrado, confirma que o ambiente universitário ainda é excludente, elitista e profundamente hostil às vozes oriundas das favelas. Um exemplo concreto dessa exclusão está na exigência de proficiência em línguas estrangeiras para ingresso na pós-graduação: no mestrado, exige-se uma; no doutorado, duas. Considerando que menos de 1% dos moradores de favelas dominam um segundo idioma, a exigência não é apenas técnica — é um filtro classista e racial. Enquanto isso, um cidadão norte-americano precisa apenas dominar sua língua nativa para acessar os mais altos graus acadêmicos em seu país. O recado é claro: o sistema acadêmico brasileiro não está interessado em incluir os corpos e saberes favelados. Por isso, meu compromisso é seguir na luta pela democratização da universidade, com políticas de permanência e acesso real. Defendo que, ao invés de exigir proficiência prévia, os cursos de pós-graduação incluam formação linguística em sua grade, garantindo que os estudantes saiam qualificados, e não que sejam barrados na entrada. Meu plano é seguir resistindo, mas também propondo. Persistir na construção de uma universidade verdadeiramente plural, que reconheça o valor dos saberes periféricos e que não transforme o mérito em mais uma máscara da exclusão e quem sabe não termos as nossas próprias universidades com epistemologias favelista.

 

 

– Você desenvolve, em seu livro, o conceito de favelismo e faz um apanhado sócio-histórico para chegar a ele. Como você define esse conceito resumidamente?

 

– O favelismo é uma teoria política que reconhece a favela como um sujeito histórico, coletivo e ativo na produção de conhecimento, cultura e transformação social. Embora hoje eu esteja sistematizando esse conceito na academia, ele é fruto de uma longa tradição de resistência que remonta aos quilombos. Todo movimento que afirma a dignidade, o protagonismo e os direitos do povo preto e periférico já expressa, na prática, o favelismo. O que proponho é uma disputa de narrativa: deslocar a favela do lugar de carência para o lugar de potência epistêmica e política. A favela é, sim, um polo de inteligência social. Não estamos à margem — somos o centro de uma nova gramática de mundo. O favelismo é, portanto, o nome dessa virada: uma revolução construída a partir dos valores, da força e da criatividade radical dos territórios favelados. Temos a capacidade de parar na beira do lago e a partir das dificuldades criar iscas e pescar oportunidades.

 

– Como você acha que esse conceito pode ser útil não apenas para as pessoas que vivem nas favelas, mas para sociedade de modo geral?

 

O favelismo não pretende ser uma teoria universal como as ideologias hegemônicas, o liberalismo e o comunismo. Não quero que ele seja “o caminho, a verdade e a vida”. Pelo contrário: reconheço que existem múltiplas formas de organização, no mundo, que não conheço, e seria arrogante afirmar que o favelismo resolve tudo. O que afirmo, com convicção, é que a favela possui valores essenciais que podem inspirar transformações profundas na sociedade como um todo: solidariedade, autogoverno, ajuda mútua, afeto coletivo. Esses princípios estão enraizados no cotidiano das favelas e são formas reais de sobrevivência e construção de vida. Se tivéssemos acesso às mesmas oportunidades que a classe média, as soluções que emergiriam dos nossos territórios seriam muito mais humanas, inovadoras e inclusivas do que as que hoje governam o país. O favelismo, nesse sentido, é uma proposta ética e política que pode reorientar o Brasil.

 

– Você fala também sobre a importância da participação política, da ocupação desse espaço pelos protagonistas. Como você propõe essa participação?

 

Essa participação já está em curso. Temos o partido Frente Favela Brasil, que propõe uma nova lógica de representação política; temos a CUFA – Central Única de Favelas, que desenvolve como ninguém as potencialidades da favela e reforça meu orgulho de ser favelado; temos a Frente Nacional Antirracista, que articula dezenas de organizações do movimento negro; temos a Favela Seguros, que promove proteção financeira e geração de renda dentro das comunidades. E há muitas outras: Unegro, Voz das Comunidades, CEAP, FavelaLog, entre tantas. Além disso, já estamos em espaços antes impensáveis: na TV, na universidade, nos ministérios, no legislativo. Ainda é pouco, considerando a dimensão étnica e social do Brasil, mas o processo já começou. O próximo passo é ampliar essa presença e radicalizá-la. Precisamos ocupar mais, disputar com força e construir um novo horizonte político. É hora de dizer com todas as letras: Locke, o pai do liberalismo, era empresário do tráfico negreiro; Kant, referência do iluminismo, afirmava que o branco europeu era superior e que o homem africano era próximo de um quadrúpede. O mundo foi pensado sem nós, e frequentemente contra nós. Chegou a hora de pensá-lo a partir de nós. O favelismo é isso: uma nova epistemologia, um novo projeto político gestado por quem sempre esteve à margem, mas que agora se coloca no centro.

 

– E quem são os protagonistas das favelas?

 

Os protagonistas das favelas são, indiscutivelmente, os próprios favelados. No entanto, a sociedade insiste em falar por nós, como se nossas vozes precisassem de tradução. Todo mundo acha que tem algo a ensinar à favela, mas poucos estão dispostos a aprender com ela. Quando se trata de pensar Nietzsche, ouvimos especialistas no autor. Mas quando se trata de pensar a favela, raramente escutam seus especialistas — os próprios moradores. As soluções para nossos problemas continuam sendo formuladas por quem vive no asfalto, distante da realidade que deseja transformar. Isso se reflete em políticas públicas ineficazes, como programas de saúde mental elaborados sem ouvir quem vive o cotidiano da favela. O erro está justamente aí: não nos reconhecer como sujeitos legítimos de conhecimento e de decisão.

 

– A sua abordagem considera também os problemas das favelas. Quais são eles, na sua visão? Como você acha que podem ser, senão solucionados, ao menos encaminhados para uma solução?

 

Os problemas estruturais das favelas são históricos e sistêmicos. A meu ver, eles se manifestam, sobretudo, na ausência de direitos fundamentais: acesso desigual à educação de qualidade, saneamento básico negligenciado, exclusão do sistema financeiro formal por meio de créditos com juros abusivos, e, principalmente, a permanente ausência ou atuação violenta do Estado na segurança pública. No entanto, creio que o maior de todos os problemas é a negação da favela enquanto sujeito político. Ela é tratada como objeto de intervenção, e não como produtora de conhecimento, cultura e projetos civilizatórios próprios. Isso impede a formulação de políticas públicas coerentes com a realidade dos territórios favelados. Uma alternativa de encaminhamento para esses problemas parte de uma provocação inspirada no pensamento do intelectual quilombola Nego Bispo: se as igrejas no Brasil possuem seus próprios meios de comunicação — que vão de rádios comunitárias a redes de televisão —, seus hospitais, escolas e universidades, e se os militares, o judiciário e outras instituições têm seus próprios sistemas financiados pelo Estado, por que não reivindicar o mesmo direito para os povos das favelas? Precisamos construir nossos próprios aparatos institucionais, orientados por epistemologias favelistas e antirracistas. Isso significa criar:

 

  1. Escolas favelistas: que ensinem desde uma pedagogia territorializada e libertadora até uma história contra-hegemônica, ancorada nas experiências de resistência das periferias.
  2. Hospitais para a saúde favelada: com uma abordagem centrada nas doenças negligenciadas pela medicina tradicional e nos impactos psíquicos da violência estrutural.
  3. Canais de comunicação autônomos: que rompam com os estigmas impostos pelas mídias tradicionais e valorizem a produção simbólica dos territórios populares.
  4. Um Ministério da Favela: ou instância equivalente, que coordene, articule e financie políticas públicas pensadas com e a partir das favelas.

 

 

Essa arquitetura institucional deve ser financiada pelo próprio Estado, a exemplo do que já faz com outras instituições de poder. Trata-se, portanto, de uma refundação da ordem democrática, em que a favela deixe de ser apenas destinatária de políticas assistenciais e passe a ser autora de seu próprio projeto político. Esse é, a meu ver, o caminho para que os problemas das favelas sejam não apenas "encaminhados", mas efetivamente enfrentados por dentro, com protagonismo favelado.

 

– Você fala muito na ausência do Estado ou na presença de um Estado opressor em sua obra. O que se pode fazer para que esse mesmo Estado seja presente de uma forma construtiva?

 

De fato, minha obra parte da constatação de que o Estado brasileiro se constitui historicamente como um aparelho de dominação territorial, racial e de classe, cuja presença nas favelas é marcada por duas faces perversas: a negligência e a repressão. A ausência se dá quando o Estado se omite na garantia de direitos fundamentais; a presença, por sua vez, se manifesta quase exclusivamente por meio da polícia, da criminalização e da violência institucionalizada. Ou seja, o Estado está presente, mas de forma destrutiva. Apesar disso, não defendo o colapso do Estado nem um projeto anarquista. Acredito na centralidade do Estado como mediador de conflitos e promotor de justiça social. O problema é o modelo de Estado que temos. O Estado brasileiro nasce elitista, escravocrata, racista e profundamente antipopular — e até hoje se recusa a reconhecer a favela como parte legítima da nação. A pergunta sobre como transformar esse Estado opressor em um agente construtivo é, como costumo dizer, a "pergunta de bilhões". Não há resposta simples. A reinvenção do Estado exige um processo profundo de refundação democrática, que só pode vir a partir da inserção radical dos sujeitos historicamente excluídos — os povos das favelas, das periferias, os quilombolas, os indígenas — nos centros de decisão.

 

– Falando ainda sobre o Estado, agora especificamente na questão da segurança pública, como você desenharia um modelo ideal de uma polícia mais próxima da comunidade e, ao mesmo tempo, atuante contra o crime?

 

Responder a essa pergunta exige, antes de tudo, reconhecer uma verdade incômoda: o Estado, tal como está estruturado, não é apenas omisso diante do crime nas favelas — ele frequentemente participa dele. Há fartas evidências e denúncias de envolvimento de agentes públicos — policiais, políticos, membros do judiciário — com grupos criminosos. Em muitos casos, o que vemos nas favelas é uma espécie de concessão informal do Estado para que determinados grupos exerçam o controle territorial, desde que garantam uma certa “ordem” funcional à lógica dominante. Portanto, a ideia de que o Estado combaterá o crime de forma eficaz e ética, sem antes enfrentar sua própria corrupção e conivência, beira a ficção. Dito isso, qualquer proposta de um modelo ideal de segurança pública precisa partir de uma profunda desmilitarização da lógica policial e da ruptura com o paradigma de guerra. A polícia ideal para as favelas deve ser civil, comunitária, treinada para mediar conflitos e com forte controle social sobre sua atuação.

 

– Para finalizar, como mostrar à sociedade esse potencial da favela, esses valores do favelismo? Como trabalhar essa conscientização da favela como potência?

 

Uma parte expressiva da sociedade brasileira já começa a reconhecer o protagonismo das favelas como territórios de potência econômica, cultural e política. Entretanto, esse reconhecimento ainda é fragmentado, frequentemente folclorizado, e raramente se converte em políticas estruturais de valorização. Com uma população estimada em cerca de 17 milhões de pessoas, as favelas movimentam mais de R$ 200 bilhões por ano, segundo dados da economia popular. Não há futuro para o Brasil enquanto projeto nacional sem o enfrentamento direto da desigualdade social — e isso passa, inevitavelmente, pela centralidade das favelas. O favelismo, enquanto teoria política e projeto civilizatório, propõe justamente esse deslocamento epistemológico: deixar de ver a favela como carência e passá-la a enxergar como inteligência coletiva, potência criativa e eixo estruturante de um novo Brasil. A conscientização desse potencial exige três movimentos:

 

1. Disputar a narrativa: romper com os estigmas midiáticos e construir canais próprios de comunicação para difundir os valores, saberes e histórias das favelas.

 

2. Transformar a favela em sujeito político: por meio da formação de lideranças, participação institucional e ocupação dos espaços de poder com agendas próprias.

 

3. Educar a sociedade como um todo: promover uma pedagogia pública antirracista e descentralizada, que reconheça a favela como parte constitutiva da identidade nacional.

 

Como bem diz meu amigo Celso Athayde, uma de minhas maiores inspirações, ao lado da minha mãe, na construção do favelismo: “Ou dividimos as riquezas desse país, ou todos pagarão o preço da desigualdade”. A favela não é o problema do Brasil — é sua solução, desde que seja ouvida, respeitada e colocada no centro do debate nacional.

Sobre o autor

O AUTOR  – Gê Coelho (Geraldo Henrique Santos Coelho) é mestre em filosofia e ativista político, com a vivência forjada nas favelas do Rio de Janeiro. É fundador da Frente Favela Brasil e da Frente Nacional Antirracista. Dedicou toda sua vida à luta contra as desigualdades, pelo fortalecimento da identidade preta e favelada e pela resistência e construção de novas possibilidades para o povo periférico.

Ficha técnica do livro

 


Favelismo

Autor: Gê Coelho

Formato: 15,6 X 23cm | Brochura

Preço: R$ 49,00 impresso; 36,00 e-book

Págs.: 144

ISBN: 9786556471563

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