Em Os Interiores (Editora Patuá), autor mistura distopia e memória regional para refletir sobre crises sociais, climáticas e políticas do país
A violência de gênero, a militarização, as mudanças climáticas e a crise social vivida pelos retirantes estão no centro de Os Interiores (Editora Patuá, 164 págs.), romance de estreia do escritor, roteirista e professor universitário João Matias. O autor que, com este romance, figura entre um dos selecionados do Prêmio Alta Literatura, apresenta elementos distópicos para construir uma trama regional ambientada nos interiores do Nordeste brasileiro, em diálogo com acontecimentos políticos recentes e com a história do país.
“Os Interiores se estrutura, em grande parte, numa espécie de road book, em que cenas brutais e diálogos afiados se cruzam num fluxo de tensão que flerta com o novo horror, ao mesmo tempo que traz em suas elipses referências aos anseios reacionários de um Brasil recente”, destaca o escritor e crítico literário Sérgio Tavares, em texto da quarta capa.
Distopia, memória e crítica social
Segundo o autor, a ideia inicial nasceu de sua vivência no período de violência, injustiça social e negligência climática entre 2018 e 2022, além do desejo de prestar homenagem ao clássico Cândido ou O Otimismo, de Voltaire. Ao longo da escrita, percebeu que a obra reunia traços comuns às distopias, especialmente ligados a transformações climáticas, políticas e tensões sociais.
No centro da narrativa está Tieta, protagonista marcada pelas privações da infância, pelas violências sofridas e testemunhadas e pela necessidade de enfrentar homens para conquistar seus direitos. No ímpeto de reaver as terras que eram de seus antepassados, Tieta assassina seu marido, o general Mauro Müller, para obter suas terras, dando início a uma viagem pelos sertões em busca de tudo aquilo que é seu. “O livro também aborda a questão de gênero através da trajetória da personagem, das violências que enfrentou e da forma como se reconstruiu”, afirma o autor.
A geografia como personagem
Para João Matias, o espaço é um elemento fundamental. “Gosto de narrativas em que a paisagem tenha sua própria eloquência. Que os personagens dialoguem com o espaço e sejam em parte sujeitos e objetos dele. Gosto de pensar a geografia do insólito como uma possibilidade narrativa, não só como um mero artifício”, explica.
Não por acaso, ao longo do livro, as paisagens sofrem transformações, ameaças e colonialismos, reforçando o caráter simbólico da ambientação. Essa atenção ao espaço também marca os livros anteriores do autor e seu próximo projeto: um romance policial e histórico situado no litoral nordestino, que parte da memória de um fato traumático.
“Em meu trabalho literário, tento pôr na aridez da terra, bem como na umidade de uma cidade litorânea, um pouco de vivacidade e também das disputas que lhe cercam. Das contradições e irreverências de um lugar atravessado por sertões e sentidos; pelo rural e o urbano; pelo cotidiano e o extracotidiano; pela seriedade e a ironia; pelo gozo e pela violência”, observa.
Entre ficção e acontecimentos reais
Embora seja, nas palavras do próprio autor, “uma maneira de acertar as contas com o governo militarista outrora vivido nos idos de 2018”, o romance também se ancora em episódios históricos. Um exemplo são os campos de concentração criados no início do século XX para conter retirantes das secas, conhecidos como “currais do governo”. Em 1877, Fortaleza chegou a registrar uma invasão de refugiados da seca, gerando um medo coletivo de repetição do episódio. “Pode-se dizer que estes retirantes são refugiados climáticos, expressão que só veio a ter sentido na contemporaneidade”, pontua o autor.
Sobre o autor
Nascido em Juazeiro do Norte (CE) e residente no Crato (CE), João Matias também viveu em outras cidades, entre elas João Pessoa (PB), onde morou por 15 anos. Jornalista e cientista social, é professor da Universidade Regional do Cariri, atuando na disciplina de Teoria e Pesquisa em Sociologia e no Programa de Pós-Graduação em Letras.
Antes do romance, construiu trajetória sólida como contista, com os livros O lugar dos dissidentes (Editora Escaleras, 2019), Os santos do chão bravo (Caos e Letras, 2022) e As madrinhas da rua do sol (Caos e Letras, 2023). Também é roteirista de cinema e quadrinhos, coautor do argumento do longa de horror brasileiro O Nó do Diabo (2017), apresentador do podcast sobre literatura Lavadeiras do São Francisco e integrante do projeto O Livro Quebrado, dedicado a entrevistas com autores nacionais.
Entre suas influências literárias estão Rachel de Queiroz, Dalton Trevisan, Murilo Rubião, Rubem Fonseca, Cormac McCarthy, Flannery O’Connor, Silvina Ocampo, Ana Paula Maia e João Ubaldo Ribeiro. “Creio que busco uma linguagem próxima de uma realidade sucinta, objetiva e clara, mas sem renunciar à ironia. Procuro encontrar no leitor o respiro, a cadência e o ritmo de uma tensão urdida no limite do real e do irreal, da crença e da dúvida, da calma e da violência”, resume.
Trecho de Os Interiores
“Tem algo de interessante e triste no ofício de matar maridos. Mesmo quando a poeira baixa, e o pano percorre os ladrilhos do piso ensopado de sangue, a adrenalina não passa... [...] Algo que nem Van Gogh faria, mas coisa de que Tieta, num arfado, se orgulha.”
FICHA TÉCNICA
Livro: Os Interiores
Autor: João Matias
Gênero: romance/ficção
ISBN: 978-65-281-0142-9
Editora: Patuá
Páginas: 164
Adquira “Os Interiores” pelo site da editora Patuá: https://www.editorapatua.com.

Nenhum comentário:
Postar um comentário