Camila Landi, coordenadora e professora do curso de Gastronomia do Centro de Ciências Biológicas e da Saúde (CCBS) na Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM)
O recente filme “Nonnas”, lançado na Netflix, dividiu opiniões de quem assistiu. Alguns (a maioria) vibraram e amaram! Outros, já nem tanto... Poucos, em maioria os que viveram e cresceram na Itália vieram com novos conhecimentos da cozinha de sua terra natal.
Aqui, não entro em polêmicas, mas defendo meu olhar e peço licença para que construa o filme com ele.
A maioria (filhos, netos e bisnetos de imigrantes italianos no país) sentiu uma certa nostalgia ao assistir cenas que retratam momentos de famílias no Brasil. Cenas de uma Itália à mesa não vivida por lá, mas aprendida por aqui com os seus.
Esse caso coincide com minha nostalgia e encanto com a película. Momentos de comensalidade mil que vivi dentro de casa. As festas regadas à tarantela, funiculi funicula, Luciano Pavarotti, entre outros clássicos que tocavam nas festas de família.
Os almoços de domingo, repletos de antepastos, pão filão italiano, massas secas e recheadas, molho ao sugo, risottos, bracciolas, rocamboles de carne, entre outros. A pizza de domingo, os doces e o falatório enlouquecedor. Ah... o falatório. E a avó e tias-avós tomando vinho e, felizes, cantarolando e emendando “brigas” ao mesmo tempo!
Enfim, cada família tem suas características e particularidades, mas em suma, a cena era basicamente a mesma, mudando detalhes dos cardápios e personagens.
Sim, pois isso acaba sendo muito particular de cada família, diante do fato de cada uma delas ter uma origem específica e suas receitas de família criadas, reinterpretadas e adaptadas. E o filme (criado em terras norte-americanas, e com a cozinha construída por um imigrante) fala disso essencialmente. Pois muitas dessas receitas nem na Itália existem, mas foram criadas fora do território italiano. Seja por adaptação, reinterpretação ou proximidade. Uma cozinha e uma vida criada em um novo destino, em um novo território e, portanto, nada autêntico e original ao que encontramos naquela época e atualmente na Itália.
Digo isso, pois em minhas pesquisas, enquanto historiadora e pesquisadora de alimentação e gastronomia, uma coisa que enfatizo e defendo é que a cozinha criada pelo imigrante é uma cozinha que nasce em um novo momento, um novo recorte temporal e geográfico. Portanto, recriada, adaptada e inventada na maioria das vezes.
O risotto não era o mesmo. Bem como o hábito do risotto e da polenta vinha mais com os italianos do Norte. Se a família tivesse vindo do Sul, a comida era outra, pautada nas massas, pouca carne e, comumente, a base de um item: o trigo, que fazia o pão, a massa da pizza e a massa do macarrão. O tomate fazia o molho e a carne dava tom ao molho bolonhesa que nasce aqui (adaptação do “ragu”), como outros molhos.
A briga entre as cozinhas do Norte, do Centro e do Sul (algo que aparece com as Nonnas do filme), é algo que se vê muito (ou se via) nas famílias de imigrantes. Isso trouxe nostalgia para alguns e para outros soou como algo inexistente, falso e absurdo. Sim, é inexistente, de fato, pois o filme trata do imigrante em uma nova terra, recriando uma cena de comensalidade que traz união, acalanto, afago e muita memória de vida e família. De memória afetiva de sua terra natal.
Por esse motivo, defendo que o filme deve ser visto dessa forma: sem críticas ao autêntico, mas sim com a pureza e beleza de ler gestos de cenas de comensalidade em família. Nas famílias que nasceram de imigrantes italianos no país, em um novo local e que possuem hábitos próprios e particulares.
Sabe-se que as maiores levas de imigrantes italianos na América vieram para o Brasil, para os Estados Unidos da América e para a Argentina. Foram décadas de imigração e cada uma delas com seus traços, locais de origem, hábitos, músicas e receitas. Traços esses que foram introduzidos em uma nova terra, com outros hábitos e outros ingredientes locais. Por isso, uma cozinha recriada, adaptada, reinterpretada. Uma nova cozinha italiana, portanto.
Defendo que não devemos ver o filme com a lente de quem viveu e cresceu em terras italianas, mas sim com o olhar de certa forma “romantizado” de quem viveu essa história em novas terras e se recorda desses momentos clássicos de comensalidade com pureza, leveza e nostalgia infantil. Uma memória afetiva, portanto.
Independentemente da opinião e do gosto de cada um, o qual respeito, peço essa leitura. Peço, em especial, que assista ou reveja o filme com um olhar afetivo e de memória (para quem a teve) de cenas de comensalidade que toda criança, como eu, no caso, sendo neta, bisneta ou filha de um imigrante italiano certamente viveu.
Se não dançou ao redor da mesa e decorou festas com toalhas xadrezes, certamente rasgou um filão com a mão e “chuchou” no molho de tomate, pendurou guardanapo na borda da camiseta para não sujar de molho (sempre generosos), que cortou a massa no prato com garfo e faca até entender que o correto era comer sem cortá-la, mas que comeu generosas fatias de lasanha, “nhoques”, espaguetes, fusillis frescos. Que comeu bracciolas, almôndegas, polpetones, antepastos de abobrinhas e berinjelas regados no azeite de oliva, tomou vinhos açucarados ou não, que comeu tiramissú, cannolis. Que tomou gelatos italianos, tortas de ricota e que no Natal ajudava a Nonna, sim: a NONNA a fazer cantuccis, biscoitos de amaretto, struffoli. Que partiu aquele panetone ou comeu até o pandoro com requeijão!
Viva a cozinha afetiva! O filme fala sobre isso!
*O conteúdo dos artigos assinados não representa necessariamente a opinião do Mackenzie.
Sobre a Universidade Presbiteriana Mackenzie
A Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) foi eleita como a melhor instituição de educação privada do Estado de São Paulo em 2023, de acordo com o Ranking Universitário Folha 2023 (RUF). Segundo o ranking QS Latin America & The Caribbean Ranking, o Guia da Faculdade Quero Educação e Estadão, é também reconhecida entre as melhores instituições de ensino da América do Sul. Com mais de 70 anos, a UPM possui três campi no estado de São Paulo, em Higienópolis, Alphaville e Campinas. Os cursos oferecidos pela UPM contemplam Graduação, Pós-Graduação, Mestrado e Doutorado, Extensão, EaD, Cursos In Company e Centro de Línguas Estrangeiras.
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