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quinta-feira, 10 de julho de 2025

Premiado roteirista Antonio Arruda lança “O corte que desafia a lâmina”, livro que cruza gêneros, entre ficção e autobiografia, e disseca dores íntimas

 


Publicado pela Editora Cachalote, o livro, estreia do autor na literatura, trata da pulsão permanente entre vida e morte e propõe uma estética da cicatriz

“Há, em todo pássaro, um limite de liberdade e morte.

 A mesma garra que impulsiona para o voo é a que sustenta o pouso

 (e todo pouso de pássaro carrega um pouco de morte).

 Há, em todo pássaro

 uma chama alimentada pelo vento de seu voo

 se apaga

 fim do dia

 no galho repousado.”

 — Trecho do livro


Vencedor do prêmio APCA em 2014, indicado ao ABRA em 2022 e também reconhecido pela série da Netflix Cidade Invisível, o roteirista, jornalista e mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada Antonio Arruda estreia na literatura com o livro O corte que desafia a lâmina (Editora Cachalote, 131 págs.). A obra, híbrida entre ficção e autobiografia, se estrutura como um inventário poético e visceral de experiências extremas — narrativas que oscilam entre o íntimo e o simbólico, o real e o alegórico, o profano e o sagrado, costuradas por uma estética do enfrentamento. Os textos mesclam corpo, silêncio, rito e transformação.


Lançado neste ano, o livro já vai para a primeira reimpressão e teve lançamentos em São Paulo e Santos (SP), Florianópolis (SC) e Rio de Janeiro (RJ). Em julho, será lançado em Aracaju (SE). Também foi tema de discussão no Clube de Leitura "O Inconsciente em Verso", da psicóloga, psicanalista e doutora em Educação Mariana Giorgion.


O ponto de partida do livro é a morte do pai do escritor, vítima de um câncer que extirpou parte de seus órgãos, deixando-o sem voz. E é justamente da ausência da voz do pai que nasce a voz poética do autor. E essa dor não se esconde, mas serve como caminho: “O livro fala do atravessamento do eu por suas dores, seus traumas, num enfrentamento entre o corte e a lâmina”, explica Antonio. Essa dualidade, que se dá no atravessamento da dor juntamente com a manifestação do erótico, forma a proposta estética do autor, que define sua obra como construída sobre uma estética da cicatriz, tanto na forma quanto no conteúdo.


O livro traz uma linguagem sensível, onde o ritmo e as pausas potencializam a densidade emocional do texto. Os textos nasceram a partir da oficina literária da poeta Isadora Krieger, onde as criações eram lidas e comentadas de forma coletiva. Mas houve um momento em que o autor precisou ficar sozinho com seus textos para “ouvi-los”. “Foi então que a lâmina-palavra começou a cortar o livro-corpo”, conta. “Cada texto foi ganhando formas criadas pela lâmina-palavra, literalmente. E o conto virou poema que virou aforismo que virou ensaio - essas camadas todas entrelaçadas. O que eu busquei foi olhar de verdade para o percurso do corte à cicatriz. Atravessar as camadas. Era como se eu conseguisse sentir o movimento da navalha-palavra riscando a pele da página e virando texto.” 

 

Logo no capítulo de abertura, Em nome do filho, um homem precisa retirar uma parte doente do próprio corpo para tentar sobreviver. É um conto de extrema fisicalidade, em que cada vírgula parece cortar — ou curar — junto ao leitor. Os dez capítulos seguintes, apesar de autônomos, mantêm uma relação estruturada em ambiguidades e ambivalências presentes na tensão dual entre eros e tânatos. “Cada texto traz um acontecido inaudito de dor aguda. Mas que propõe, ao mesmo tempo, um percurso em direção ao epifânico, ao anímico”, define o autor.


A obra de Antonio está profundamente ligada à sua vivência pessoal, marcada por experiências de violência que ele transforma em linguagem e enfrentamento. Temas como morte, sexualidade e homoerotismo atravessam sua escrita, refletindo sua trajetória como homem gay assumido desde os 17 anos. O conflito entre desejo e repressão cotidiana torna-se um eixo central de sua criação. Além disso, sua ligação intensa com a umbanda e religiões de matriz africana, vivenciada desde a infância, também permeia seus textos, que incorporam aspectos míticos, místicos e espirituais ligados à sua atuação como pai de santo.


Uma das passagens mais emblemáticas do livro ilustra essa abordagem: um homem carrega a carcaça de uma tartaruga devorada por urubus até o mar — e afunda com ela. Um gesto que beira o absurdo, mas que simboliza com força a tensão entre morte e renascimento que atravessa toda a obra.


Da TV e das salas de aula para a literatura


A estreia de Antonio na literatura é, na verdade, a realização de um sonho de infância. “A palavra poética, literária, como matéria-prima e forma de percepção e expressão, faz parte da minha vida desde sempre”, conta. “A publicação de O corte que desafia a lâmina representa algo que vislumbro desde os meus nove anos. Ver esse sonho materializado é uma alegria imensa.”


Natural de Guarulhos (SP), nascido em 1977 e criado na capital paulista, Antonio tem uma trajetória marcada pela multiplicidade. Passou pelos cursos de Música e Letras após se formar em Jornalismo pela Cásper Líbero, em 1998. Em 2008, concluiu o mestrado em Teoria e Literatura Comparada pela USP.


No audiovisual, construiu uma carreira sólida. Foi roteirista de programas premiados da TV Cultura, como Quintal da Cultura e Era uma vez no Quintal, que recebeu o prêmio APCA de Melhor Programa Infantil em 2014. Na Netflix, fez parte da equipe de roteiristas das duas temporadas da série Cidade Invisível, protagonizada por Marcos Pigossi e Alessandra Negrini, trabalho que lhe rendeu a indicação ao prêmio ABRA em 2022. Também foi consultor criativo da série espanhola Santo (coprodução com o Brasil) e co-roteirista do longa O Mel é Mais Doce que o Sangue (2023), dirigido por André Guerreiro Lopes.


Como jornalista, atuou na Folha de São Paulo, especialmente no caderno Equilíbrio, com reportagens no Brasil e no exterior. Em países como Alemanha, França, Holanda e República Tcheca, investigou o papel cultural dos mercados públicos em cidades como Paris, Amsterdã e Praga.

No campo da educação, lecionou literatura e redação para o ensino médio e cursinhos pré-vestibulares, além de disciplinas como Semiótica e Linguagens no ensino superior. Hoje, atua como coordenador pedagógico e educacional para adolescentes.


Leia um trecho (pág. 104):


“Caminhava através da clareira da mata em direção à praia. Descalça. Os pés sentiam as deformidades do solo e as suas próprias. O solo sentia as deformidades dos pés e a sua própria. Ela chão, ele mulher. As terras conviviam em cumplicidade de acorde e escultura. Terras-pés, terras-ela, ela-solos, era noite – comiam os restos do dia, os cabelos dela pretos comiam a noite, restos de dia morno, o vento criava movências sutis na pele de maresia, cada célula-terra, cada célula-mulher atritavam-se delicadamente num mesmo universo. Mínimo e total. Caminhava alicerçando enorme incerteza: as mãos sobre o ventre.

Sentou-se no centro da dúvida. Sombreavam sobre sua pele folhas, riscados de seiva, ela-seivas, ela-noite cercada de árvores fecundas, ela-lua, no centro do caminho, cheia, encruza. No centro do centro, do inquieto movimento das possibilidades, o devir, esse cristal turvo.

As mãos sobre o ventre.

Olhou o motivo da dor: um espinho. Bem maior do que se concebe de um espinho cravado no pé. Inútil tentá-lo arrancar – quanto mais o fazia, mais penetrava na carne exausta.”

 

Adquira “O corte que desafia a lâmina” pelo site da Editora Cachalote:

 https://aboio.com.br/loja/produto/o-corte-que-desafia-a-lamina

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